Argumentação trabalhada desde cedo

A habilidade para defender ideias e pontos de vista pode começar a ser desenvolvida já nos anos iniciais


     

Letra A • Sexta-feira, 21 de Dezembro de 2018, 14:59:00

 
Por Bruno E. Campoi
 
Quando se fala em argumentação, pode parecer, à primeira vista, que essa é uma competência complexa e que sempre envolve grandes debates públicos e discussões acaloradas de pessoas com grande saber sobre determinado assunto. Mas, na verdade, argumentar faz parte do dia a dia de todos, inclusive das crianças que estão nos primeiros anos escolares. Segundo Telma Ferraz Leal, doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do Centro de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL), elas começam a argumentar desde muito cedo. Suas primeiras experiências acontecem espontaneamente nas relações familiares. As oportunidades para argumentar também acontecem na companhia dos colegas, nas brincadeiras em que é preciso assumir determinados papéis ou quando querem definir as regras de algum jogo.
 
Apesar de ser uma elaboração que fazemos, muitas vezes, sem pensar no ato em si, a argumentação pode ser aprimorada na sala de aula. Para isso, segundo Francisca Maura Lima, doutora na área de Educação e Linguagem também pela UFPE, podem ser criadas situações nas quais as crianças precisem decidir sobre questões da própria sala ou da escola: “a escolha do tema é fundamental para que haja mobilização para o debate. É importante que o tema seja polêmico, que permita a emergência de várias posições legítimas sobre ele”. E é exatamente dessa forma que a argumentação é desenvolvida no Centro de Educação Infantil Menino Jesus, no município de Lagoa Santa (MG), onde Claudinea Ferreira, professora da turma de Educação Infantil II, realizou uma experiência, colocando as crianças em roda para discutir por que gostariam que o parquinho fosse pintado. Isso fez com que logo elas começassem a argumentar e a defender seu desejo.
 
Um dos grandes diferenciais dessa prática, quando desenvolvida dentro da escola, segundo Francisca, é propiciar que a criança participe de um processo mais elaborado, em que ela aprende a acessar e selecionar informações de acordo com cada contexto. Isso é observado, na prática, na Escola Municipal Augusta Medeiros, em Belo Horizonte (MG), onde a professora Érika Pettersen desenvolve com seus alunos do primeiro ano do Ensino Fundamental a argumentação com o uso de gêneros literários. Enquanto lê para seus alunos histórias como “Menina Bonita do Laço de Fita”, vai tirando de um baú objetos pertencentes àquela história e perguntando o que as crianças conhecem sobre eles. Somente depois de contada a história e aguçada a lembrança é que ela começa a colocar algumas questões para que as crianças argumentem sobre, por exemplo, o que é possível aprender com determinado personagem e o que as crianças acharam dele. Além disso, segundo ela, a relação que os alunos fazem da história com aquilo que eles vivenciam também é uma ótima ferramenta para que a oralidade seja trabalhada.
Argumentar sem ter medo da própria voz
Para trabalhar argumentação na escola, é preciso também que os professores tenham cautela. Francisca defende que a escola, enquanto instituição, tem seus próprios valores e sua própria voz, o que “é importante que tenha”, mas “quando um tema é discutido e a professora (na condição de representante da escola) assume com muita autoridade a posição da escola, os pontos de vista são homogeneizados, [e] as crianças assumem de forma geral o ponto de vista institucional”. Assim, é preciso que se desenvolva um debate sem autoritarismos e que possibilite a divergência para uma experiência mais eficaz de argumentação.
 
A atividade argumentativa desenvolvida por Claudinea foi possível por esse motivo, já que, antes mesmo da discussão sobre a pintura do parquinho, as crianças foram estimuladas, sem a interferência da professora, a falarem o que gostariam que fosse melhorado na escola. As sugestões foram anotadas na lousa e a escolha foi feita por votação. Depois de argumentarem sobre a pintura do parquinho, ainda foi possível, com a ajuda da professora, a criação de uma carta destinada à diretora com os argumentos anotados no quadro durante a discussão.
 
Além das atividades desenvolvidas por essas professoras, Telma sugere também o desenvolvimento de outras atividades, como as de organização e participação em debates, leitura e produção de cartas de reclamação, cartas de leitores, artigos de opinião, dentre outras. O importante é que a criança possa emitir opinião, questionar, duvidar e sugerir. O desenvolvimento da habilidade de argumentação por meio dessas atividades é possível, segundo ela, porque são desenvolvidas competências importantes, como a de anunciar um ponto de vista, justificá-lo, contra-argumentar, analisar proposições contrárias, dentre outras. Entretanto, como lembra Francisca, “o convencimento até faz parte do processo, mas é apenas consequência (...) se não estamos dispostos a estabelecer um diálogo, não somos bons argumentadores”, afirma.
 
Francisca afirma, ainda, que as situações de conflito são necessárias para que as crianças aprendam a lidar com as diferenças. Dessa forma, o papel dos professores e professoras deve ser o de mediador desses possíveis conflitos que possam surgir, e não o daquele que os evita. Segundo ela, ainda há uma ausência do “tema” da argumentação na formação dos professores, o que “deixa adormecida a discussão sobre uma aprendizagem que é fundamental, faz parte das relações, acontece todos os dias”. Telma acrescenta que, se o professor tem dificuldade em argumentar, ou em auxiliar os alunos a elaborar seus pontos de vista e justificá-los, pode fortalecer pouco a aprendizagem argumentativa.
Uma forma de trabalhar a argumentação
As situações em que os gêneros argumentativos são trabalhados de maneira direta e sistemática nas salas de aula do início do Ensino Fundamental ainda são a exceção, não a regra. De acordo com Dorotea Frank Kersch, doutora em Filologia Românica e pesquisadora na linha de pesquisa "Linguagem e Práticas Escolares" da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), os gêneros textuais que envolvem a argumentação só começam a aparecer nos anos finais do Ensino Fundamental ou, em alguns casos, somente no ensino médio. Outro agravante é o de que, segundo a experiência dela, muitos dos professores com os quais ela teve contato não seguiam o “fio condutor” dos livros didáticos, usando apenas partes deles ou mesmo partes de coleções diferentes.
 
Para que a argumentação seja trabalhada nas escolas, Dorotea recomenda o trabalho com Projetos Didáticos de Gênero (PDGs), que são um conjunto de atividades de leitura e escrita trabalhadas de acordo com o contexto, nas quais esses aprendizados são tratados como práticas sociais, cujos textos se relacionam com as demandas dos alunos e das professoras e professores e com seu agir no mundo. De acordo com a pesquisadora, essa é uma boa maneira de trabalhar a argumentação em sala porque, “tendo os gêneros como catalisadores das atividades, em que múltiplos letramentos são acionados, os alunos se apropriam naturalmente de gêneros considerados difíceis”. Logo, se a adequação ao contexto social e a maneira como os textos são trabalhados fazem com que o uso de determinado gênero seja natural e compreensível para eles, os alunos ficarão mais motivados e não vão considerá-lo difícil.
 
Um exemplo em que um PDG foi usado no ensino da argumentação nos anos iniciais é o da professora e pesquisadora Jane Engel Corrêa, que desenvolveu com seus alunos do terceiro ano da E.M.E.F. Caldas Junior, em Novo Hamburgo (RS), um debate regrado sobre o aumento da violência. O tema surgiu quando ela percebeu que muitos deles traziam relatos para a sala de situações que estavam acontecendo no bairro da escola, em uma época em que houve um grande aumento nos casos de violência. Segundo ela, a argumentação oral foi escolhida porque se tratava de crianças ainda em alfabetização. Assim, depois de uma produção inicial na qual as crianças tentaram criar um debate com base nos conhecimentos delas, assim como defende o PDG, a professora ensinou o que era o debate regrado e suas características e também mostrou vídeos de alguns debates reais. A partir daí se escolheu quem seria o mediador, os debatedores e a plateia, que também participou fazendo perguntas. Dessa situação surgiram falas, como: “a solução é a polícia conversar com os bandidos e dizer que eles não podem mais fazer isso, que eles têm que ser gentil...", que demonstram como a argumentação nos anos iniciais não só é possível como também importante.