Do papel ao pixel

As adaptações de obras impressas para o mundo digital e as novas possibilidades desse tipo de literatura


     

Letra A • Quinta-feira, 17 de Outubro de 2019, 16:31:00

 

Por Bruno E. Campoi

Os novos recursos digitais permitem, cada vez mais, que a literatura não fique restrita ao papel, além de aumentar a gama de possibilidades de expressão da criatividade do autor. Desde os anos 60, muito antes dos tablets e smartphones, são feitos experimentos, principalmente no meio acadêmico, com a chamada literatura digital. Hoje em dia, com a popularização dos dispositivos eletrônicos, há um maior interesse do mercado editorial nesse tipo de produção,que investe principalmente em obras voltadas para as crianças, assim como explica Edgar Roberto Kirchof, professor da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).

Segundo o professor, enquanto a literatura digitalizada é composta por textos construídos seguindo a estética ou a estrutura de um livro impresso e acessíveis através dos meios digitais, a literatura genuinamente digital é composta por obras que utilizam “recursos de computação na própria estrutura, na própria organicidade da obra”.

Marcelo Spalding, professor, escritor e doutor em Letras pela UFRGS, explica, ainda, que a literatura digital utiliza recursos que só são possíveis no meio digital. Segundo o professor, existem três grandes eixos de recursos característicos da literatura digital: a interatividade, onde o percurso e o final da história podem ser alterados pelo leitor; o multimídia, onde são incluídos na narrativa elementos fotográficos, musicais, audiovisuais, etc.; e a colaboração, onde é possível ter papel ativo no desenrolar da história por meio de algum tipo de contribuição. Apesar disso, obras desse tipo não precisam conter todos esses elementos ao mesmo tempo. Segundo o professor, “o autor, na sua criação, pode escolher explorar um ou outro projeto, uma ou outra linguagem do meio digital”.

Entretanto, obras pensadas originalmente de forma digital ainda não são tão comuns. Segundo Kirchof, o que geralmente ocorre é a adaptação de livros que fizeram sucesso na forma impressa, para esse novo suporte. Nesse processo, uma série de profissionais, que vão desde programadores até designers gráficos, incorporam elementos próprios do mundo digital na narrativa. De acordo com o professor, esse processo acaba mudando a natureza de uma obra, já que ele “muda completamente o modo como aquela obra é recebida, como ela é consumida, como ela é lida, como ela é interpretada e como ela é experimentada”.

Um exemplo dessa transformação em um texto é o livro Poesia Visual, publicado em 2000 pelos autores Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski, na época, funcionários da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Como atuávamos na UFRGS como professores e pesquisadores, começamos a estudar as possibilidades do hipertexto e daí veio a ideia de tentarmos trazer para o espaço digital alguns poemas desenvolvidos para o livro”, relata Ana. Assim, o site foi lançado em 2001 e ainda pode ser acessado pelo link. Para fazer poemas digitais, Sérgio nos conta que “é preciso trabalhar em equipe, com pessoas que tenham afinidades com o projeto e próximas umas das outras”.

Os autores reconhecem que a poesia digital ainda não é muito popular. Para Sérgio, “muitas pessoas não conhecem esse tipo de produção porque ela é marginal no campo literário. São novas linguagens ainda não legitimadas, tidas como um jogo ou uma brincadeira digital”. Ana ainda diz que as palavras “poesia, jogo, interação, leitura” trazem significados que variam de acordo com elementos sociais, históricos, culturais, econômicos etc. e que elas estabelecem fronteiras que, em alguns casos, podem ser importantes e, em outros, “inúteis e limitadoras”.

É muito comum que os textos digitais, principalmente os voltados ao público infantil, contenham jogos. Entretanto, é preciso tomar cuidado para não confundir a literatura digital com os elementos que a constituem. Para Kirchof, a obra digital pode incorporar jogos, utilizando alguns de seus elementos ou até mesmo adotando a própria estrutura de um. Porém, isso não a torna necessariamente um jogo. Para ele, isso se dá porque os jogos já existiam anteriormente, já tinham um público formado e os seus próprios objetivos. Uma produção preserva o seu aspecto literário se ela se pretende literatura e tem como objetivo final “um tipo de fruição literária, mesmo que seja uma fruição hibridada”.

A professora como mediadora de leitura

Por ser recente para o grande público, é comum que, de início, muitas pessoas sintam dificuldades em compreender as narrativas digitais. Isso se dá, segundo Kirchof, por conta da cultura do livro impresso em que as pessoas estão inseridas. O leitor muitas vezes acaba esperando interagir com o mundo digital da mesma forma que faria com um livro impresso, sem entender que a leitura se dá de uma forma diferente. Por isso, para ele, é importante que esse tipo de leitura seja introduzida por um mediador: “os melhores resultados de leitura vêm acontecendo quando tem a figura de um mediador que de alguma maneira conduz ou ajuda esse leitor a explorar a potencialidade dessas obras”.

Não por acaso, o professor é um dos mais importantes mediadores de leitura, seja de literatura digital ou de qualquer outra. É o que afirma Mônica Daisy Vieira Araújo, professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Com isso, é importante que o professor promova a experimentação das mais diversas obras literárias. Porém, de acordo com a professora, o grande benefício do universo digital é o de que o professor pode “aproximar os interesses e gostos da nova geração para promover a formação de leitores”.

É isso que é possível observar no caso da professora Fátima Cafiero, que leciona na Escola Municipal José Madureira Horta, no município de Belo Horizonte (MG), e que, entre os anos de 2013 e 2015, participou com a sua turma de 25 alunos de uma pesquisa desenvolvida por pesquisadores e pela professora, a partir de um edital (FAPEMIG/CAPES), que visava investigar e experimentar o potencial das tecnologias digitais para o trabalho da alfabetização. Entenda mais sobre essa pesquisa no link.

Uma das atividades desenvolvidas por Cafiero na pesquisa visava introduzir e trabalhar a literatura digital na sala de aula. A obra escolhida foi a história interativa Chapeuzinho Vermelho, da falecida escritora mineira Ângela Lago, baseada no famoso clássico infantil homônimo. Acessada por meio do website da escritora (atualmente indisponível), a obra permitia que as crianças mudassem o percurso da história, tomando decisões de forma ativa no desenrolar dos acontecimentos. “Eles já conheciam a história de Chapeuzinho Vermelho impressa (...) então eles já tinham uma certa expectativa do que iam encontrar no site, só que achavam que ia ser a história linear, do jeito que já conheciam. E quando eles começaram a descobrir que dentro do site podiam alterar com o clique o final, eles acharam aquilo muito interessante”, diz Fátima.

A professora conta que, no começo, também teve um pouco de dificuldade para entender a obra, mas depois que percebeu o que podia ser feito, passou a estimular a interação dos alunos. Posteriormente, muitos daqueles que compreenderam primeiro a proposta levantaram de seus lugares e foram mostrar para os colegas que eles também podiam interagir com o conteúdo do site. A atividade também serviu de ponto de partida para outras, como a produção de uma história em quadrinhos pelas crianças, usando recursos do ambiente digital.

A professora Mônica afirma que o tipo e o nível das modalidades de comunicação contidas em uma obra de literatura digital influenciam a forma como ela é lida. Ela explica que “as obras de literatura digital criadas com mais recursos semióticos, com sons, imagens em movimento, hipertextualidade, compartilhamento, colaboração, demandam, também, a participação do leitor para que a obra seja lida e podem exigir do leitor um esforço cognitivo maior do que as obras literárias que não são digitais”.

A partir de uma mudança de paradigmas, a tecnologia digital vem desafiar o modelo atual de escola ao nos fazer repensar as estruturas fechadas que geralmente são postas. Nesse sentido, mesmo que ainda não exista uma solução definitiva para transformar as práticas pedagógicas, caminhos estão sendo criados. “A escola tem que se reinventar e a pedagogia tem que se reinventar também. Eu acho que sim, nós vamos ter que aprender jeitos diferentes de ensinar e de aprender. Nós estamos caminhando para isso”, acredita Kirchof.