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Palavra canônica

Autor: Gilcinei Teodoro Carvalho,

Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG / Faculdade de Educação / Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita-CEALE,

Na língua portuguesa, há uma variedade de composição de palavras, segundo diversos aspectos: a) número de sílabas (palavras de uma só sílaba – má, é, a – e até mais de cinco – necessariamente, paralelepípedo); b) localização do acento (palavras oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas) e c) constituição silábica (palavras com sílabas CV, V, CCV, CVC, dentre outras). No conjunto dessa variedade, no entanto, há algumas estruturas que são preferenciais. Esta preferência é dada ou definida por dois critérios que atuam simultaneamente. De um lado o critério quantitativo que tenta apontar, no universo das palavras, qual é o padrão mais recorrente. Por exemplo, no inventário lexical do português, há mais paroxítonas do que proparoxítonas. De outro lado o critério qualitativo que tenta avaliar as implicações das diversas constituições da palavra para formular alguma generalização que permita melhor explicar alguns fenômenos linguísticos e, em contrapartida, permita também entender as estratégias ativadas pelo usuário da língua. Tais estratégias se aplicam a atividades de fala, de leitura e de escrita, já que, em tese, algumas estruturas são mais facilmente processadas do que outras. Assim, a ‘síncope’ nas proparoxítonas (ex. abóbora > abobra) indicaria uma tendência em direção à palavra canônica. Além desse aspecto acentual (tonicidade) é possível elencar as regularizações silábicas processadas em várias atividades – fala, leitura, escrita – que indicariam, também, tendências generalizantes. Nas palavras ato, pato, prato, parto com estruturas diferentes na primeira sílaba (V,CV,CCV,CVC), existe uma hierarquia estrutural que coloca a sílaba CV como prototípica. Esta classificação da sílaba CV é endossada pelas tentativas de se regularizar a sílaba: a tendência é reduzir as sílabas CCV ou CVC para CV ou transformar as sílabas V em CV. A complexidade silábica não é, portanto, definida linearmente, tanto que a sílaba composta por uma só vogal é mais complexa do que a sílaba formada por consoante e vogal.

A canonicidade de uma palavra seria evidenciada pelo padrão silábico (número e qualidade de sílabas) e pela estrutura prosódica (padrão acentual). Isso significa dizer que uma palavra típica da língua portuguesa seria formada por sílabas CV e com a tonicidade recaindo na penúltima sílaba (paroxítona). Além disso, do ponto de vista da extensão, composições de palavras dissílabas e trissílabas têm uma maior frequência do que as palavras monossílabas.

Duas outras fontes fornecem dados para endossar o conceito de palavra canônica: a diacronia e os empréstimos linguísticos. A análise da história da língua pode ser um caminho importante para indicar as regularizações processadas na composição das palavras, já que uma mudança linguística pode ser orientada por tendências padronizantes. A análise dos empréstimos linguísticos também seria um indicador de tendências. Quando uma palavra estrangeira é incorporada ao léxico do português ou ela mantém as características da língua de origem ou se adapta ao português. Nessa última hipótese, é a existência de um padrão que atribui nova conformação à palavra, tanto na estrutura acentual quanto na estrutura silábica. A palavra sanduíche, por exemplo, se aportuguesou quando o acento (a tonicidade) foi deslocado para a penúltima sílaba, seguindo o padrão paroxítono da língua.

 

A palavra canônica ofereceria, potencialmente, menor dificuldade devido a sua menor complexidade estrutural e a sua maior familiaridade. Nos processos de aquisição, tanto da fala quanto da escrita, as formas tardiamente adquiridas podem estar diretamente relacionadas à complexidade estrutural: estruturas mais simples são adquiridas primeiro, o que sugere uma gradação na aquisição.

Conhecer essas questões da estrutura da palavra – e o conceito de palavra canônica –   não significa, para o alfabetizador, controlar o acesso ao léxico da língua portuguesa, especialmente porque muitas das formas que fogem a um padrão podem ter um uso muito produtivo, como é o caso do verbo ser (irregular sob vários aspectos, mas de uso muito frequente). Observar as regularizações no modo como as palavras se estruturam pode explicar alguns fenômenos sistematicamente presentes no processo de aquisição da fala e da escrita, o que evitaria justificar os ‘erros’ dos aprendizes apelando-se unicamente para a desatenção como forma preferencial de entender os desvios produzidos no processo de aprendizagem.


Verbetes associados: Dislexia, Estrutura Silábica, Léxico, Palavra, Segmentação de palavras, Sílaba, Sílaba canônica, Tonicidade


Referências bibliográficas:
ALVARENGA, D. Análise de variações ortográficas. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, ano 1, n.2, p.24-35, mar./abr. 1995.
CAGLIARI, L. C. Alfabetização & Linguística. São Paulo: Scipione, 1989.
Da SILVA, A. Alfabetização. A escrita espontânea. São Paulo: Contexto, 1991.

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