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Letra A • Quarta-feira, 26 de Outubro de 2022, 01:54:00

 
Cartas que contam histórias
 
Professora cria jogo de cartas com personagens negros, o Bafo Afro, a fim de incentivar o conhecimento da cultura afro-brasileira
 
Por Isabella Lino
 
A professora Perla Santos, desde a sua formação, sempre se comprometeu em abordar as questões e a cultura negra e afro-brasileira com os alunos em qualquer oportunidade que tivesse. No ano de 2019, em uma de suas aulas, Perla explicava para a turma do terceiro ano da EMEF Mário Quintana, em Porto Alegre (RS), que é possível que as pessoas negras ocupem vários lugares da sociedade se elas assim desejarem, inclusive a medicina, mas uma das crianças a questionou: “Verdade? Eu nunca vi um médico negro.” “E aí isso ficou em mim, aquela fala me marcou”, relata. Inspirada pela situação, Perla iniciou um intenso trabalho de promoção do conhecimento de ícones da luta negra tendo como objetivo levar mais representatividade para o ambiente escolar, além de encorajar os alunos, que em sua maioria eram negros, a enxergarem o seu potencial. A professora, com a ajuda dos alunos, desenvolveu o Bafo Afro, um jogo de cartas que tem como personagens diversas pessoas negras importantes para a história do país e do mundo.
 
Segundo Perla, a ideia de construção do Bafo Afro não surgiu de forma imediata, mas foi sendo trabalhada ao longo de todo o ano de 2019. Tudo começou quando a professora percebeu que, em sua turma, as meninas estavam muito interessadas nas princesas da Disney e viu nisso uma oportunidade para ensinar sobre princesas africanas e afro-brasileiras, como Aqualtune, Dandara, Kimpa Vita e Zacimba Gaba. “E aí eu comecei a fazer uma troca, falei que elas me contariam a história das princesas que elas conheciam e eu contaria a das princesas que eu conhecia. Só que essas princesas que eu conhecia não ficavam esperando o príncipe na torre e nem desejavam ficar, não esperavam o príncipe resolver os seus problemas para viverem felizes para sempre.” A partir daí, a professora passou a apresentar para os alunos outros personagens negros importantes para a luta negra, como Zumbi dos Palmares, Cruz e Souza e Ben Carson, um dos maiores neurocirurgiões pediátricos já existentes. 
 
Coincidentemente, no mesmo período, emergiu uma febre entre os alunos da EMEF Mário Quintana, o bafo. O bafo é um jogo de figurinhas em que cada carta corresponde a um personagem, seja um desenho ou um super-herói, que possui habilidades que equivalem a uma certa quantia de pontos. O objetivo do jogo é fazer com que o jogador consiga virar as cartas apenas com o deslocamento do vento gerado pelo impacto da batida da mão com a superfície onde as cartas estão posicionadas, acumulando o máximo de pontos possíveis. “Eram cartinhas bem baratinhas e às vezes eles deixavam de comprar merenda para comprar as cartinhas e começavam a bater. [...] Queriam também jogar na hora da aula”, relata a professora.
 
O Bafo Afro surge a partir dessa realidade, objetivando transformar uma situação que estava sendo nociva para os estudantes em uma maneira lúdica e divertida de se propagar o conhecimento. Para a construção do jogo, Perla se propôs a aprender com as crianças como funcionava a dinâmica do bafo, a estudar a estruturação das cartas e a produzir uma nova versão com heróis e heroínas negros em vez das figuras tradicionais. “Aí nós medimos as cartinhas, eu comecei a fazer uns esboços para tentar estudar em casa e ver como dava pra fazer. E aí eu comecei a fazer as cartinhas em casa, né, no Word, foi bem simples no começo.” Segundo a professora, a maior dificuldade enfrentada com relação ao processo de produção do Bafo Afro foi a impressão, pois as cartas precisavam ser feitas em um papel mais grosso e a impressora que estava disponível na escola, por ser um pouco mais antiga, não era capaz de concluir a reprodução da imagem, sendo necessário realizar em uma gráfica. Os alunos participaram da criação do jogo, personalizando e enfeitando as cartas do baralho com desenhos, dando a elas um caráter único.
 
A primeira versão do Bafo Afro foi composta pelos ícones da luta negra que foram apresentados e trabalhados com os alunos do terceiro ano, como a Dandara, o Ben Carson e o Zumbi dos Palmares, além de outros grandes nomes, como o professor Oliveira, cada um com uma pontuação específica. No Bafo Afro, todas as mulheres possuem uma pontuação maior do que a dos homens, pois o jogo busca incentivar a valorização da mulher negra, tendo em vista que ela é a que enfrenta mais desafios no Brasil. Segundo Perla, para jogar o Bafo Afro, os alunos foram separados em grupos e um integrante de cada deveria ir à frente da turma e bater e apresentar para os colegas o personagem presente na carta virada. 
 
Atualmente, a professora refez o Bafo Afro e construiu, com o auxílio do artista Max Leidemer, um design profissional e uma caixa própria personalizada. “Pela simplicidade que eu acho que deu muito certo, sabe? Porque os alunos participaram da construção [...] E esse jogo vem da realidade deles, então eu não precisei ensinar as regras, pelo contrário, eles é que ensinaram.” Além do Bafo Afro, Perla lançou mais um jogo de cartas, que tem como temática “mulheres negras latino-americanas e caribenhas”. Os dois jogos são comercializados por um valor acessível e podem ser adquiridos por meio de um contato pelo Instagram. “Quando eu trabalho em sala de aula essa história, é pensando que essas crianças não precisam passar por isso [falta de representatividade], que elas podem conhecer uma história que os livros não contam, eu sempre digo isso pros meus alunos, os livros não contam, mas é a nossa história e nós precisamos contá-la”, complementa Perla.