Desmonte na educação brasileira

As conquistas asseguradas nas últimas décadas na educação básica em nosso país vinham tentando efetivar uma educação de mais democrática e diversa. Contudo, nos últimos cinco anos, temos vivenciado constantes investidas contrárias ao que vinha sendo construído


     

Letra A • Domingo, 23 de Outubro de 2022, 13:35:00

 
Por Pedro Eufrosino
 
O desmanche educacional pode ser um plano governamental, bem como nos alertou o sociólogo Darcy Ribeiro: “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. Com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, o breve mandato de Michel Temer e a ascensão do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro, o ensino básico do Brasil vem sofrendo desde então com desequilíbrios orçamentários, planos mal formulados e que excluem a diversidade, polêmicas envolvendo os três ministros do atual governo, entre outros problemas. Apesar de a educação no Brasil estar longe do desejado há muito tempo, desde a redemocratização do país vinha se buscando, de forma geral, estabelecer uma realidade educacional mais justa, inclusiva, diversa e de qualidade. 
 
A Constituição Federal de 1988, conhecida também como Constituição Cidadã, é o ponto nevrálgico dos direitos educacionais do Brasil. Depois de 21 anos sob regime militar, que estabeleceu a censura à livre expressão, restringiu os direitos sociopolíticos e perseguiu opositores, foi produzida a Carta Magna mais democrática e plural já vista no país. A grande contribuição em relação à educação está no Artigo 205, que a define como “direito de todos e dever do Estado e da família, [que] será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, estabelecendo então a educação como um direito fundamental e inalienável. “O trecho ‘um direito de todos’ reforça o fato de a educação, antes de 1988, ter sido um direito de poucos, um privilégio das classes mais altas. Com a Constituição, o direito dos direitos fica resguardado ao povo brasileiro”, afirma Catarina de Almeida Santos, professora associada da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Comitê-DF da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE).
 
Em 1996, durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, foi criado o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que possuía a validade de 10 anos. No mesmo ano, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) foi aprovada. A nova LDB reforça a municipalização do Ensino Fundamental, estipula a formação do docente em nível superior e coloca a Educação Infantil na posição de etapa inicial da Educação Básica. Em 2006, durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, o Fundef torna-se Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). Com o desafio de ampliar o acesso à escola e melhorar os índices nas avaliações, percebeu-se a necessidade de ampliar os recursos na área e alcançar todas as etapas. O decreto que regulamentou o Fundeb estabeleceu vigência de 2007 até 2020, permitindo assim um longo período de financiamento assegurado para a educação.
 
Durante o segundo mandato de Lula, ocorreu a implementação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (PNEEPI) por meio do Decreto n.º 7.611. A partir dela ficou estabelecido que é dever do Estado a efetivação e a garantia de um sistema educacional inclusivo, sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades. Em 2009, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 59, que determinou a ampliação da obrigatoriedade escolar para 4 a 17 anos até 2016, que até então era dos 6 aos 14 anos. 
 
No período de 2011 a 2016 (ano do impeachment de Dilma Rousseff), os principais marcos são o novo Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, que estipulou 20 metas para a melhoria da qualidade da Educação Básica, e o início das discussões acerca da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). 
 
Para Catarina Santos, a partir de 2016 perdas na área da educação vêm acontecendo, principalmente na figura da Emenda Constitucional nº 95, que prevê uma redução dos gastos públicos tidos como primários. “Ela vai atuar naquilo que faz com que a constituição brasileira seja chamada de Constituição Cidadã, ela atinge o artigo sexto*. A emenda limita os gastos das despesas primárias, que são os gastos voltados para a garantia dos direitos sociais.” Para a professora, é a partir desse momento que a educação passa a ser atingida e começamos a dar um passo para frente e três para trás.
 
Fissuras no período Temer
 
Antes da entrada de Bolsonaro, passagem de Michel Temer pela presidência já iniciou fissuras na área da educação. Em 2017, o presidente, em colaboração com o ministro da Educação Mendonça Filho, publicou, no dia 18 de julho de 2017, o decreto nº 9.099, que previa mudanças significativas no PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) – programa que avalia e disponibiliza obras didáticas, pedagógicas e literárias, entre outros materiais de apoio, à prática educativa, de forma sistemática, regular e gratuita. A nova regulamentação modificou o processo de avaliação das obras a serem compradas pelo Estado. Antes, o MEC repassava a universidades públicas a avaliação dos materiais de cada área do conhecimento e, com o decreto, o Ministério da Educação forma uma comissão a partir de indicações das escolas da Educação Básica e das universidades públicas e privadas. Outro ponto alterado é o ciclo de distribuição dos materiais, que passou de 3 para 4 anos. Por fim, uma mudança chamou a atenção dos educadores do ensino infantil: com a nova regulamentação, estes passam a receber materiais didáticos. 
 
No mesmo período, ocorreu a homologação da BNCC por meio da Portaria nº 1.570. César Callegari, sociólogo, consultor educacional e ativista pelos direitos à educação, participou da primeira fase de construção da Base, ainda no governo de Dilma Rousseff, e para ele a BNCC acabou sendo construída com uma síntese de múltiplos conflitos, principalmente no que tange à esfera de privatização do ensino público brasileiro. Callegari ressalta que “muitas coisas que estão na Base, principalmente na educação infantil e no ensino fundamental, estão muito avançadas diante do quadro de retrocessos que nós estamos vivendo no Brasil hoje”.
 
O ensino médio também foi afetado pela homologação da BNCC. Aprovado em 2017, pela Lei nº 13.415, o “Novo Ensino Médio” é uma política que planeja tornar a etapa mais atrativa e evitar que os estudantes abandonem os estudos. A ideia inicial era começar a implementação no primeiro ano do ensino médio e ir expandindo para os outros anos, contudo a implementação só começará a acontecer em 2022. Com o novo modelo, parte das aulas devem ser comuns a todos os estudantes do país, e a outra parte os próprios alunos poderão escolher aprofundar o aprendizado nas quatro áreas do conhecimento (Linguagens, Ciências Humanas, Ciências Naturais e Ciências Exatas).
 
Ainda durante o governo Temer “outro exemplo de descompromisso é o Plano Nacional da Educação de 2014, que começou a ser minado já no mandato de Temer, na medida em que quase todos os seus objetivos, metas e estratégias não foram atingidos, mesmo aqueles que foram alcançados estão sendo alvos de ataques nesse governo [do Bolsonaro]”, afirma o ativista.
 
Outra ação realizada no governo Temer é a regulamentação da Política Nacional de Avaliação e dos Exames da Educação Básica, com a integração do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), do Encceja e do Enem. Com isso, deixaram de existir a Avaliação Nacional de Educação Básica (Aneb), Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Anresc), conhecida como Prova Brasil, e a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA). 
 
Para Cláudia de Oliveira Fernandes, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e coordenadora o Grupo de Estudos e Pesquisas em Avaliação e Currículo (GEPAC), a aglutinação das provas em larga escala “deixa os pesquisadores cautelosos, porque as políticas [das avaliações] começaram a mudar de forma acelerada, e as motivações e justificativas para tais alterações não eram e ainda não são advindas de resultados de pesquisa”.  
 
“No início, a aplicação das provas do SAEB eram amostrais, então não tínhamos uma associação da avaliação com uma política de meritocracia, elas possuíam um papel muito importante – apontar em que locais seria importante o Governo Federal implementar políticas de formação, de fomento, de ampliação, enfim, o objetivo não era ranquear, dar nota e comparar as escolas e os estudantes. Contudo, a partir da década de noventa, as avaliações tomam a cena na política educacional, elas começam a ditar o que vai ser ensinado nas escolas, o que vemos desde então é uma grande influência desses testes no currículo escolar”, relembra a professora.
 
Segundo Cláudia, a motivação econômica dos testes em larga escala no Brasil vem fazendo das avaliações um “bode expiatório” para poder implementar um projeto educacional de maior subordinação aos interesses do mercado educacional. “As provas estão implicadas e enredadas em questões político-econômicas. São muitas as políticas relacionadas com as avaliações, assim, no meu ponto de vista, as políticas de avaliação acabam legitimando a privatização da educação pública brasileira, bem como acontece em outros países da América Latina”.
 
 

*São direitos sociais [básicos/primários] a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

 

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