Gêneros e gramática

O uso de linguagem neutra e o ensino de gramática


     

Letra A • Domingo, 23 de Outubro de 2022, 14:11:00

 
Por Luigy Hudson
 
“A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo, e a gramática normativa é a tentativa de descrever apenas uma parcela mais visível dele, a chamada norma culta”, escreve o professor de Linguística da Universidade de Brasília (UnB), escritor e tradutor Marcos Bagno, em seu livro Preconceito Linguístico – o que é, como se faz. Para Bagno e diversos outros linguistas e estudiosos, o ensino de língua portuguesa do modo como é feito nas escolas vem se tornando um problema na medida em que se reduz o português a uma simples catalogação de termos técnicos e à análise de enunciados privados de contexto. Incutida no senso comum e reproduzida há séculos nas instituições educacionais brasileiras, a equivalência entre ensino de gramática e ensino de língua contribui para empobrecer e limitar o processo de aprendizado das crianças.
 
Uma das questões mais discutidas atualmente, que demonstra o caráter adaptativo e dinâmico da língua portuguesa, é o que vem sendo chamado de Linguagem Neutra ou Linguagem Não binária. Usada principal, mas não exclusivamente, por jovens da comunidade LGBTQIAP+, ela surge como um conjunto de propostas para tornar a língua mais inclusiva e acompanhar as mudanças de paradigma social que vêm colocando em xeque a dominação heteronormativa que a parcela conservadora da sociedade exerce sobre o idioma. Segundo o jornalista Andre Fischer, criador do portal MixBrasil (um dos principais canais de informações e cultura LGBTQIAP+ do Brasil) e autor do Manual Ampliado de Linguagem Inclusiva, “mudanças estão hoje sendo discutidas e propostas decorrentes da evolução da própria sociedade e a língua tem que as acompanhar. Se a gente vive em uma sociedade que está contestando e questionando valores machistas, o idioma vai naturalmente evoluir dessa forma também”.
 
Antes de tudo, vale dizer que há diferenças entre Linguagem Inclusiva e Linguagem Não Binária. A primeira prevê o uso de artifícios para que se possa diminuir o preconceito e o sexismo impregnados na língua portuguesa desde sua formação. Trata-se de evitar usar termos e expressões que possam ter conotação ofensiva e carregada de preconceito, principalmente aquele voltado ao gênero feminino. “A linguagem inclusiva usa as ferramentas que estão postas hoje na gramática, o que já é dado, sem a criação de novos termos”, ressalta Fischer. “Ela é passível de ser aplicada a partir de agora, basta que seja feita uma escolha (que não deixa de ser política, no sentido mais amplo da palavra), de se passar a incluir no discurso todas as pessoas, independente de gênero. (…) Na dúvida entre usar ‘bem-vindos’, ‘bem-vindas’ ou ‘bem-vindes’, dê as boas-vindas.” Já a Linguagem Neutra ou Não Binária pressupõe a criação de um terceiro gênero gramatical, diferente dos tradicionais “feminino” e “masculino”, que possa ser usado por pessoas que não se identificam com nenhum dos dois. “A indicação básica da linguagem neutra seria o uso do ‘e’ ao invés do ‘a’ ou ‘o’, como terceira via para se referir a quem não se identifica com a binariedade (se associar ao feminino e masculino)”, escreve Fischer no Manual Ampliado.
 
Uma das questões que já surge com essa proposta é a definição de como exatamente seriam esse terceiro gênero e as formas de concordância gramatical. Ativistas e militantes que advogam o uso da Linguagem Neutra já propuseram o “Sistema Elu” (“Elu comeu uma pizza/O gato é delu”), o “Sistema Ile” (“Ile comeu uma pizza/O gato é dile”), entre outros, sem que haja qualquer consenso de qual se deva adotar. Mesmo entre os usuários, há a preocupação de que a existência de diferentes formas, usadas de diversas maneiras, possa criar ruídos na comunicação e atrapalhar o entendimento entre os falantes. “Enquanto não definirmos qual é o pronome neutro que será usado, não devemos usar o pronome neutro, porque assim o idioma, enquanto um sistema que cria códigos comuns, se perde”, aponta Fischer. “Não quero parecer conservador de achar que deva ser dessa forma, mas eu acho muito mais complicado.”
 
Gênero na escola
 
Apesar de as discussões sobre o pronome neutro terem avançado nos últimos anos, o ensino institucionalizado de Linguagem Neutra nas escolas está longe de ser aprovado. Está longe até mesmo de ser proposto. “Nunca vi ninguém propondo”, diz Fischer. “Já vi estudos na academia e algumas pessoas dizendo como se usa, mas – e olha que conheço militantes da Linguagem Neutra – as pessoas não falam sobre ensino.” Para o jornalista, há, ainda, muita diferença entre o uso informal e pontuado em conversas faladas e mensagens de texto, e o uso recorrente no cotidiano profissional e escolar das pessoas. “Quando conversamos, não falamos ‘ile’. Usamos em uma palavra ou outra para marcarmos o discurso, mas nunca vi ninguém usando recorrentemente ‘sue’, ‘mine’, apenas quando se escreve.”
 
A proibição, em contrapartida, do ensino de Linguagem Neutra em instituições escolares já acontece em vários lugares do país. Em 5 de dezembro de 2020, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) apresentou, na Câmara dos Vereadores da capital fluminense, o PL 2013/2020, que considera a Linguagem Neutra “perversões e alterações maliciosas e progressistas de suas bases” e, até julho de 2021, em ao menos 14 estados e também na Câmara Federal já foram apresentadas propostas que tentam impedir o uso desse recurso nas escolas. Tanto para Fischer quanto para o pesquisador e escritor Sírio Possenti, professor no Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, tal represália se configura como censura. De acordo com o segundo, “não se deve proibir. Inclusive, deve-se oferecer as alternativas. Não ter repressão é fundamental. Ela [Linguagem Neutra] não deveria ser proibida em lugar nenhum, nem na escola, nem por lei, evidentemente, de vereador, deputado etc. Acho isso uma cretinice absoluta”.
 
Achar e querer que as escolas ensinem apenas o “uso do português na forma e no conteúdo corretos” – como aponta o PL 2013/2020 – não faz sentido, já que o “correto” é o que está sendo falado e evolui com o tempo. Bagno afirma que, “em algumas teorias linguísticas, gramática é um termo usado para rotular o conhecimento intuitivo que cada falante tem da língua que fala. Nessa perspectiva, qualquer pessoa conhece plenamente a gramática de sua língua e é capaz de reconhecer um enunciado gramatical e um agramatical”.
 
O que é “errado” é o ensino de gramática?
 
Muito mais do que um conjunto de regras e convenções preestabelecidas, que não permitem mudanças, o idioma português – como qualquer outro – é um fenômeno em constante transformação, repleto de variações que se somam e se recriam a partir das interações entre os falantes. Línguas são aprendidas sendo faladas, reproduzidas e desenvolvidas em conjunto, seja no ambiente escolar ou fora dele, o que, para Possenti, torna inútil o ensino metódico e categórico de gramática normativa, se este não for aliado a práticas intuitivas de leitura, escrita e reescrita, buscando desenvolver a criatividade dos alunos. “Gramática não ensina a língua a ninguém”, afirma. “Gramática ensina a analisar uma língua. Ninguém aprende a fazer um período simples porque estuda o período simples. As pessoas fazem períodos simples.”
 
A forma engessada e estanque como se pensa e se reproduz o ensino de português não é recente. De acordo com Bagno, todo o projeto de mais de 300 anos de colonização europeia deve ser levado em conta para se entender por que o Brasil possui um dos piores sistemas educacionais do mundo, taxas alarmantes de analfabetismo funcional e uma parcela urbana de classe média que despreza a leitura e não consome livros. “O racismo impregnado na nossa sociedade levou as autoridades educacionais, desde cedo, a quererem criar todos os obstáculos possíveis ao ‘falar atravessado dos africanos’ (como escreveu um intelectual do século 19), de modo que o objetivo era o ensino da língua portuguesa mesmo, a mais lusitana possível”. Desse modo, desde que o sistema escolar nacional começou a se dedicar aos estudos das línguas nacionais (e isso demorou muito, só lá pelo século 19), prioriza-se uma forma de ensino que não condiz com as diferentes realidades dos estudantes e com a diversidade de falas, expressões, gírias e variações linguísticas que desenvolvem ao longo de suas formações.
 
Assim, definir certo vocabulário ou construção léxica como “correto” ou “incorreto” é uma ideia extremamente ultrapassada, que não leva em conta as nuances e complexidades das quais se constitui uma língua, e punir alunos que se expressam diferentemente do que está contido nas gramáticas normativas não contribui com seu aprendizado. Para Possenti, “isso significa que estaria, então, na hora de dizer que erros tipicamente condenados pelas gramáticas não são mais erros. Por exemplo: ‘preferir isso do que aquilo’ é obviamente uma construção padrão. Em qualquer jornal que você assista, está lá o ‘preferir do quê’. Ou então não poder começar oração com o pronome oblíquo: ‘me dá um dinheiro aí’. O português do Brasil é proclítico”.
 
Podemos ver como a língua portuguesa se configura como algo muito maior do que a gramática normativa e como seu ensino deve incluir novas formas de aprendizagem, que se aproximem mais do cotidiano, das vivências e das identidades dos alunos. Ou, por que não, des alunes?