“O foco da prática pedagógica é a criança” | parte 2


     

Letra A • Domingo, 23 de Outubro de 2022, 14:04:00

 

A PNA prioriza o método fônico em detrimento dos demais métodos de alfabetização. Na sua perspectiva, qual a importância da prevalência da liberdade do professor no que se refere a como esse processo será trabalhado com as crianças?

Olha, Isabella, a gente tem que voltar lá na década de 1980 e lembrar do texto canônico da Magda Soares, né? Quando ela diz que a alfabetização tem muitas facetas: a faceta linguística, a faceta psicológica, a faceta histórica, a faceta sociológica, enfim, ela vai descrever essas facetas. Quando a gente pensa que a alfabetização pode ser um processo levado à frente por apenas uma dessas facetas, no caso a psicológica, e ainda, pior que isso, dentro dela apenas uma referência teórica, que é a psicologia cognitivista, é um fracasso. Por que é um fracasso? Porque, veja, vamos pegar a faceta sociológica. Uma criança que vive na Pedreira Prado Lopes [comunidade de Belo Horizonte-MG], com dificuldades de sobrevivência, tem as mesmas relações ou as mesmas condições que uma criança protegida – com recursos financeiros já suficientes para sua sobrevivência, em que o pai tem empregada, a mãe tem empregada – tem de apropriar-se dessa linguagem? É lógico que não. A desigualdade social reflete na desigualdade de acesso aos bens culturais. Isso impacta na alfabetização? Claro que sim. 
 
É muito equivocado você considerar uma única faceta e ainda mais equivocado você considerar dentro de uma única faceta uma única concepção teórica. É muito triste também que em pleno 2021 a gente volte a pensar que a alfabetização é uma questão de método, né, depois de tudo que estudamos de Paulo Freire, sobre Emilia Ferreiro, que aprendemos com Magda Soares, que nós desenvolvemos em várias pesquisas. A gente voltar a isso é talvez voltar até antes de 1980, talvez para a década de 1950 com as cartilhas, porque é isso que a PNA está propondo. 
 

De que maneira os professores e as professoras da educação infantil podem auxiliar as crianças no seu processo de aquisição da língua escrita sem submetê-las a uma experiência maçante e metodológica?

Aí eu acho que a gente comete um equívoco em alguns momentos, sabe? Que tem a ver com a concepção de infância, com a concepção do conceito de brincar e deste princípio que está na Base Nacional Comum Curricular, que por sua vez bebeu na fonte das Diretrizes Curriculares Nacionais. A professora pode imaginar que esse eixo do brincar são jogos, por exemplo, de alfabetização. Então, ela pode falar: “nossa, claro que é muito lúdico o que eu faço. Eu faço bingo de letra, eu faço amarelinhas que chamam a atenção para as letras. Então, tem muita brincadeira”. Não é disso que a gente está falando, ainda que possa haver esse tipo de trabalho, mas isso não garante que a professora esteja levando em conta e tendo em consideração esse princípio de que a brincadeira precisa ser um dos eixos da prática pedagógica. Quando a gente está dizendo isso é observar a criança. Se ela está brincando que é um super herói e essa é a brincadeira da turma, como que a professora pode instrumentalizar essa brincadeira, tendo em vista que ela precisa apoiar essa criança na ampliação das experiências, nesse caso com a linguagem escrita? Ela pode fazer uma lista de coisas que precisam ser compradas para aquele super herói, ela pode fazer uma lista dos melhores super heróis, ela pode fazer sobre quais os poderes que os super heróis mais utilizam, ou seja, ela vai trazer a linguagem escrita, que é o que a gente está conversando aqui hoje, para aquele contexto da brincadeira. Isso é muito diferente de você bolar jogos pedagógicos e dizer que você está levando em consideração esse princípio de que a brincadeira é um eixo da prática pedagógica.
 
Então, esses exemplos que eu estou dando é para deixar claro que se deve partir da necessidade daqueles sujeitos que vivem a primeira infância e mostrar que a leitura e a escrita podem integrar aquelas práticas sociais, porque é um direito daquelas crianças. Não é trazer do nosso olhar adulto aquilo que a gente acha que é legal para a criança. Por isso que eu digo que na educação infantil a observação do que está acontecendo é um elemento fundamental para o planejamento, para a sistematização desse conhecimento, saber observar, saber escutar as crianças. Observar o que está acontecendo para que a gente cumpra com o Artigo 3° das Diretrizes, né, que ao definir currículos diz: o currículo é o conjunto e as práticas que articulam conhecimentos e saberes que a criança tem com os conhecimentos tecnológicos, culturais, etc. Observar as práticas, escutar as crianças e a partir daí você instrumentalizar. 
 

O PNLD 2022 da Educação Infantil pretende distribuir livros didáticos para os alunos da Educação Infantil. Na sua opinião, o uso desses materiais na primeira infância é positivo para a aprendizagem do aluno?

Na minha opinião, é pernóstico qualquer livro didático e não apenas este livro didático que o PNLD está adquirindo e vai distribuir. Nós do Fórum Mineiro de Educação Infantil, do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil e do Movimento Brasil Afora, fizemos uma campanha para que as professoras dissessem não a esse livro didático. Este, especialmente, é o pior dos livros, porque o edital exige que seja fundamentado nos métodos fônicos ou nas abordagens fônicas. Então, é o pior que podia ter acontecido. Ter livros didáticos é ruim, muito ruim, e ter esse tipo de livro didático é péssimo. 
 
Por que o livro didático é ruim? E eu preciso fazer uma distinção entre livro didático e material didático. O livro didático tem essa característica de organizar o conhecimento, organizar em tempos, em unidades, em escolher o que ensinar, definir os conteúdos, as áreas e distribuir isso ao longo do tempo dentro daquele suporte que é o livro. Bom, se ficou claro o que eu disse sobre o que é o conceito de currículo na educação infantil e se ficou claro o que a Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil determina, que é um currículo baseado no cotidiano, um currículo que considera a criança como centralidade do processo educativo, facilmente a gente vai dizer que não vai existir um livro didático que leva em conta as vivências daquele grupo, daquela classe, daquela turma. É a professora que vai saber isso, é ela que lida com essa relação em que as crianças sabem, experimentam, com aquilo que ela pode e deve no sentido de ampliar as experiências. E é muito óbvio pra gente também dizer que o currículo da educação infantil não está baseado em disciplinas, em áreas do conhecimento ou em listas de conteúdos e habilidades, ele está baseado no sujeito e na ampliação das experiências que esse sujeito tem o direito de experimentar graças a uma boa mediação feita por profissionais qualificados, as professoras.
 
Então, a única coisa que eu posso dizer é: livro didático não. Porque esse é o conceito de livro didático. Agora, materiais didáticos sim. Por exemplo, livros infantis, como livros de literatura e livros informativos de qualidade, sim, estes nós queremos que sejam comprados pelo Ministério da Educação e é um dever do Ministério, a partir da Emenda Constitucional 59 de 2009, que diz que esses materiais devem chegar na Educação Infantil, como brinquedos, equipamentos lúdicos e investimentos na área em mobiliários. 
 
 

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