O momento de consolidar

A consolidação da alfabetização é o destaque da nova edição do Letra A. Pesquisadores, gestores e professores refletem sobre ensino, currículo, avaliações e formação docente no 4º e no 5º anos


     

Letra A • Segunda-feira, 05 de Fevereiro de 2018, 14:36:00

Por J. Pedro de Carvalho

“Acontecia muito que não era definido o papel do ano, qual alfabetizava e qual consolidava, e havia uma luta”, diz o superintendente de gestão pedagógica Felipe dos Santos, passando a cuia de chimarrão para a colega Juliane Alves, a responsável pelo Núcleo dos Anos Iniciais, enquanto os dois contavam sobre a nova configuração da rede municipal de Rio Grande (RS), onde trabalham. A referida luta teve um desfecho que orgulha os dois, com a elaboração de novas diretrizes para o 4º e o 5º anos, que têm oferecido mais clareza e ferramentas específicas para as escolas e para os professores que atuam nesses anos.

“Nós começamos a nos organizar para que as escolas entendessem que a criança estava em um processo, cujo objetivo se estabelecia na continuidade”, conta Felipe. As noções de processo e continuidade para orientar a consolidação da leitura e da escrita, dentre outros aprendizados desenvolvidos no ciclo de alfabetização, também servem de base para propostas de outros municípios, como Goiânia (GO) e Lagoa Santa (MG). Para isso, tais redes, pensando na continuidade de um projeto curricular, se apropriaram da divisão por ciclos, abandonando a ideia de seriação. Nas escolas, o sucesso no 4º e no 5º anos passa pelo uso consciente dos instrumentos fornecidos pelas secretarias e pela reflexão conjunta sobre o papel do segundo ciclo.

A psicóloga e professora da Faculdade de Educação da UFMG Maria Cristina Gouvea defende que “trabalhar com o critério da idade em um stricto sensu [sentido restrito] hoje é muito criticado”, uma vez que a seriação corresponde a uma configuração biologicamente determinada, e não considera a criança em seu contexto, para além de um suposto desenvolvimento cronológico. “Como critério de organização da sala de aula, trabalhar com ciclo te dá uma flexibilidade maior e te permite sair de um conceito normativo tão estrito”, reafirma Maria Cristina Gouvea, concluindo que “essa formalização, talvez, responda mais a uma necessidade de organização da escola do que aos processos de significação do mundo da criança”.

Sobre essas noções aplicadas à prática, Juliane Alves, de Rio Grande, afirma: “A gente não gosta de falar em seriação, porque o que importa não é corpo das séries, e sim as crianças dentro de um projeto de alfabetização”. Os motivos para a adoção dos ciclos são variados, sendo destacado, no segundo ciclo, correspondente de forma geral ao 4º e 5º ano do Fundamental, a passagem fluida da criança que deixa o primeiro ciclo, assim como da que parte para o terceiro ciclo, garantindo a noção de “transição”, como conclui Juliane: “O 1º ao 5º é uma etapa e queremos diminuir o distanciamento que existe na avaliação e no encaminhamento pedagógico. Até o 3º ano, o conhecimento é apresentado de forma integrada e, a partir do 4º, ele é fatiado. O ciclo contribui para fragmentar cada vez menos”.

Assim sendo, um conjunto de anos, entendido como segundo ciclo, após o ciclo de alfabetização – sejam eles o 4º e o 5º ou o 4º, o 5º e o 6º anos (como é o caso de Goiânia) – seriam os responsáveis por consolidar os conteúdos de alfabetização apresentados durante o 1º, o 2º e o 3º anos do Fundamental I, bem como preparar a criança para a multidisciplinaridade que lhe será apresentada em sequência: “Se uma certa base e uma certa autonomia em compreensão leitora e em compreensão de textos não ocorre, o letramento vai ser muito difícil. Então, o papel do 4º e do 5º ano é construir essa possibilidade de ingresso no universo nas diferentes disciplinas. Por isso esse papel de transição”, diz Antônio Augusto Gomes Batista, coordenador de pesquisas do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).

O segundo ciclo

“Com a regulamentação do Ensino Fundamental de 9 anos, o Conselho Nacional de Educação recomendou que os anos iniciais do Ensino Fundamental constituam um ciclo único, principalmente para os três anos iniciais”, diz Jefferson Mainardes, professor da UEPG. Assim, os demais anos do Fundamental I (4º e 5º) constituiriam o segundo ciclo. Há casos, como em Goiânia, em que o 6º ano também integra o segundo ciclo. Entretanto, Jefferson observa que, na grande parte das redes, após o ciclo de alfabetização, que já é mais bem estabelecido nas políticas, há indefinições e pouca solidez na concepção dos ciclos. “É fundamental que existam políticas específicas para os dois ciclos iniciais, de forma a garantir a aprendizagem efetiva para todos os alunos”, conclui.

 

Consolidação: o currículo no centro

Considerando o Fundamental I, por via de regra, tem-se atribuído aos seus três primeiros anos, o primeiro ciclo, a função de introduzir e garantir a alfabetização. Não é raro escutarmos a designação de “anos de consolidação” para o segundo ciclo, caminhando lado a lado com a ideia de “anos de transição”. A professora Janair Cassiano, da Escola Municipal Santos Dumont, em Lagoa Santa, destrincha esses conceitos: “Do 1º ao 3º ano, que estão na parte da alfabetização, trabalhamos a escrita e a leitura, e supõe-se que, no 3º ano, a parte da alfabetização já esteja completa. No 4º e 5º ano, consolidamos a produção de textos e uma leitura fluente, para que a criança leia e interprete, além de usar o que ele aprendeu no 1º, 2º e 3º ano, consolidando a alfabetização”, conclui Janair.

A autonomia do aluno, a ser garantida nesse momento, é outra ideia recorrente sobre o segundo ciclo, uma vez que o domínio do sistema alfabético de escrita e a iniciação em leitura e produção de textos já garantido nos primeiros anos do Fundamental, aliado ao amadurecimento da criança, lhe dará aportes para desenvolver individualmente a leitura e a escrita: “Enquanto a compreensão leitora e a produção de textos nos primeiros anos se faz com a ajuda da professora”, diz Antônio Augusto, “no 4º e no 5º, o aluno precisa ler sozinho e compreender sozinho, sem o auxílio do professor, textos de uma determinada complexidade”. Por isso, os projetos destinados ao aprendizado da língua são fundamentais, de acordo com Janair: “A primeira providência do projeto em Lagoa Santa foi a construção do currículo de Língua Portuguesa para a rede, cujas diretrizes atingiam até o 5º ano do Ensino Fundamental”.

Construção do currículo

O Núcleo de Alfabetização e Letramento de Lagoa Santa envolveu os docentes da rede na reforma curricular e, após a implantação, por meio de reuniões semanais entre membros de todas as escolas, aproxima “a reflexão teórica da realidade de sala de aula, discute metas, troca experiências e sistematiza conteúdos”, segundo Janair Cassiano, o que tem proporcionado melhoria real nos índices de aprendizagem. Conheça com detalhes a experiência em www.alfaletrar.org.br.

O professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) Jefferson Mainardes, autor de Reinterpretando os Ciclos de Aprendizagem, enaltece o trabalho realizado no município mineiro, destacando os pontos positivos: “O projeto possui exatamente o que tem faltado nas propostas atuais: um currículo explícito, elaborado com a participação dos professores; formação continuada dos professores; estratégias de acompanhamento do desenvolvimento da aprendizagem dos alunos e acompanhamento do trabalho dos professores”.

Em Goiânia (GO), o secretário de educação, Marcelo da Costa, também afirma que os ciclos devem caracterizar os objetivos do município para cada ano. Contudo, há espaço para a autonomia das escolas, desde que seguindo as diretrizes curriculares da rede, especialmente quanto aos eixos definidos para leitura e escrita e para Matemática. “Antes”, diz: “as escolas definiam os conteúdos e as disciplinas aos quais elas queriam dar ênfase, mas isso não garante uma identidade curricular mínima. Então, sem tirar a autonomia da escola e sem tirar o processo de escolha dos itinerários formativos, queremos garantir uma identidade mínima na rede, para que o aluno possa, saindo de uma escola e indo para outra, não ter qualquer prejuízo na sua formação básica”.

Parte 2 - Especial 4º e 5º: professores e avaliações

Parte 3 - A leitura no segundo ciclo

Parte 4 - A criança e o mundo