Uma escola, várias línguas

O aumento do número de estudantes imigrantes demanda inovação nas práticas de ensino e nas políticas de inclusão das escolas públicas brasileiras


     

Letra A • Sexta-feira, 13 de Julho de 2018, 13:42:00

 
Por Luiza Rocha
 
Um menino jogando futebol com os colegas na quadra da escola solta um sonoro “ai meu Deus do céu!”. Diante de uma situação complicada, uma garota não vê melhor palavra para o momento do que um bom “vixi!”. Essas expressões idiomáticas são muito comuns e não nos surpreende que crianças brasileiras as utilizem com frequência. Mas quando são proferidas por crianças sírias que moram no Brasil há poucos anos, tornam-se marcas de um aprendizado cultural.   
 
Os dois alunos estudam na Escola Municipal Infante Dom Henrique, escola de São Paulo que até o fim do ano passado tinha um quinto dos estudantes composto por imigrantes. O diretor Cláudio Marques da Silva Neto foi quem presenciou a fala dos alunos e não esconde a satisfação de perceber que as crianças estão se integrando bem à escola e ao país. Segundo ele, a instituição recebe grande contingente de imigrantes todos os anos, contando com sírios, libaneses, angolanos, bolivianos, peruanos, mexicanos, paraguaios e uruguaios.    
 
De acordo com a professora do Departamento de Linguística Aplicada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Terezinha Maher, a imigração no Brasil está presente desde os tempos coloniais, mas, nas duas últimas décadas, houve novo crescimento desse movimento, principalmente de pessoas vindas de países da América Latina e Central, refugiados do Oriente Médio e da África. Muitos desses imigrantes são famílias com crianças, que vão para as escolas da rede pública onde nem sempre existem profissionais preparados para atender todas as demandas dos novos estudantes: “Ela (a criança migrante) vai depender muito da compreensão das professoras, que não são treinadas para acomodar essas crianças bilíngues. Elas foram educadas nos seus cursos de formação, pressuponho, pensando que todos os seus alunos seriam falantes da língua portuguesa, pelo menos como língua materna, o que agora (em muitos contextos, como em alguns bairros de São Paulo) não é verdade”, afirma Terezinha.
 
Segundo a professora, em fluxos anteriores de imigração para o Brasil, os colonos tinham escolas próprias nas comunidades em que habitavam, com ensino bilíngue, em português e na língua nativa dos imigrantes. Porém, depois da Segunda Grande Guerra, o governo de Getúlio Vargas determinou que o uso de outra língua além do português era proibido, o que levou essas escolas à clandestinidade, e os estudantes “eram obrigados a entrar numa escola em que a única língua possível era o português, um desrespeito aos direitos linguísticos dessas crianças”, afirma Terezinha.
 
Nas regiões de fronteira, a presença do multilinguismo é ainda mais acentuada. Devido à alta mobilidade entre os países e a convivência de pessoas de muitas nacionalidades, o leque de línguas faladas nessas áreas é muito maior. Um grupo conhecido e comum nesses locais é dos chamados “brasiguaios” – filhos de brasileiros que moraram por um tempo no Paraguai e que, ou começaram a educação básica naquele país, ou nunca estudaram, entrando para as escolas brasileiras já em idade mais avançada do que o comum para o nível de alfabetização. Alguns falam somente português; outros, português e espanhol, além dos que falam também o guarani e o jopará – uma hibridização do castelhano e do guarani. A maioria dos estudantes que compõem esse grupo é de situação socioeconômica mais vulnerável, o que, somado à falta de preparo das escolas e às dificuldades de aprendizado e adaptação, aumenta a evasão escolar: “Mesmo o multilinguismo fazendo parte do cotidiano escolar, o que se espera é que todos falem a língua portuguesa e, mais precisamente, que escrevam apenas na sua norma culta. Esse posicionamento revela uma formação que não problematiza a multiplicidade linguística e cultural, nesse contexto”, afirma a professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) Maria Elena Santos, que pesquisa a educação dos brasiguaios na região de Foz do Iguaçu. 
 
A pesquisadora reforça a necessidade de uma mudança no currículo da formação de professores para que esses profissionais sejam preparados para situações em que tenham alunos bilíngues. Ela afirma que é preciso mudar o pensamento do aprendizado da língua, abordando o conceito de letramento além da leitura e da escrita, considerando as multiplicidades linguísticas e culturais do contexto atual das salas de aula: “Pode-se, assim, romper com o posicionamento purista em relação à língua como um sistema homogêneo, estático e externo aos sujeitos de modo que as práticas híbridas de linguagem possam ser compreendidas como próprias dos repertórios linguísticos de sujeitos multilíngues.” Terezinha Maher afirma que a hibridização das línguas é comum, visto que, para aprender o português, por exemplo, a criança imigrante lançará mão do repertório que já possui na língua materna, e isso não deve ser visto como um erro por professores. 
 
Pelo alto percentual de estudantes imigrantes, a Escola Municipal Infante Dom Henrique hoje é exemplo em acolhimento ao imigrante. O diretor Cláudio Neto, que chegou à escola em 2011, afirma que já sabia sobre a quantidade de alunos estrangeiros, mas, quando percebeu que ainda não havia projetos voltados para discutir a presença desses estudantes na escola, viu a oportunidade de trabalhar nesse sentido. Segundo o diretor, os alunos imigrantes sempre foram muito disciplinados e a maioria, principalmente os mais novos, não apresenta muita dificuldade no aprendizado do português, a ponto de ser necessário um projeto voltado para isso. Porém, ainda existiam problemas com o preconceito e a dificuldade de adaptação. 
 
Com o intuito de promover a melhor integração do aluno estrangeiro, foi criado na instituição o projeto Escola Apropriada. O projeto promove encontros quinzenais entre os estudantes estrangeiros, de modo que, sempre que há a entrada de novos alunos, eles se apresentam e contam um pouco sobre a vida no país de origem. Para o diretor, a cooperação dos colegas brasileiros e o aprendizado coletivo são indispensáveis para a verdadeira integração das crianças estrangeiras. Aprendizado que se estende às casas também, já que, para que os estudantes tenham estrutura para praticar a língua no ambiente familiar, a escola oferece curso de língua portuguesa para os pais, que, normalmente, não falam o português e têm mais dificuldade no entendimento da língua.
 

Inovação e adaptação ao ensinar Português 

 
Patrícia Contreira, professora da rede estadual do Rio Grande do Sul, teve, no ano passado, pela primeira vez em sua carreira, a experiência de alfabetizar uma aluna estrangeira. Segundo a educadora, o apoio da família – que na época tinha vindo do Uruguai há apenas meses – foi essencial para um bom desempenho da estudante na escola. A professora conta que a aluna com frequência fazia uso do espanhol quando não se lembrava da grafia de uma palavra ou quando era mais simples do que no português: “Por exemplo, se tinha que escrever “cachorro”, muitas vezes ela escrevia a palavra “perro”, que é cachorro em espanhol. Então eu considerava isso e, num determinado momento de correção de atividade, eu explicava a ela a palavra em português. Ela vinculava a palavra que para eles é mais simples, com cinco letras.”  
 
Patrícia conta que, como a situação era nova também para a escola, ela buscou ajuda na experiência de outros colegas que ensinavam em regiões mais fronteiriças e lidavam com a presença de alunos que não falam português. Uma das ideias da professora, por exemplo, foi propor atividades em espanhol para que a estudante pudesse compartilhar um pouco da sua cultura com os colegas. Mesmo que a língua estrangeira não fosse parte do currículo da turma, a professora de espanhol da escola se juntou a Patrícia e, juntas, elas elaboraram alguns trabalhos para estimular a aluna uruguaia a participar da aula, além de despertar o interesse dos colegas brasileiros também. Com essa iniciativa, a estudante se sentia mais à vontade para conversar com a turma e até mesmo tirar dúvidas sobre vocabulário: “embora ela sentisse muita vergonha, algumas vezes aconteceu de ela perguntar para nós: ‘como diz isso em português’ e ‘como diz tal palavra’, e então ela falava em espanhol” relata. “Portanto a gente nunca deixou de fazer com que ela tivesse contato com a língua dela; nós aceitamos em vários momentos a escrita [em espanhol]. Por exemplo, o cartão que ela fez para o Dia das Mães ela escreveu em espanhol.”
 
Recém-chegada à Escola Estadual Maria da Conceição Barbosa de Souza, em Uberlândia (MG), no meio do ano passado, Kelly Queiroz também se deparou com a mesma situação, inédita em sua carreira como educadora. Na sua turma do 2º ano do Ensino Fundamental, havia um menino sírio que falava muito pouco o português. Kelly conta que a grande dificuldade era fazer com que o menino se soltasse um pouco mais nas aulas, para que ela pudesse entender melhor as dificuldades. Ela percebeu que, para o estudante, elementos da nossa cultura não faziam muito sentido e isso acabava por distanciá-lo ainda mais da turma. Então, uma das ideias da professora foi trazer embalagens de produtos com escritos em árabe para que o menino lesse para a turma e traduzisse, compartilhando um pouco da própria cultura. 
 
Como as atividades do livro didático de Português não vinham surtindo muito efeito, Kelly percebeu que outra disciplina poderia ajudar no ensino da língua: “quando eu percebi que a Matemática fazia sentido para ele, por ser uma linguagem universal – e não sei se ele já tinha capacidade antes com a matemática fundamental, do dia a dia – foi mais fácil eu incentivá-lo a se esforçar na leitura e na escrita de comandos.” Através da Matemática, ela conseguiu fazer com que o aluno entendesse o que era proposto e desenvolvesse até mesmo habilidades de compreensão leitora na língua portuguesa. Além disso, Kelly afirma que viu melhora também na autoestima do estudante, que conseguiu interagir melhor com a turma dessa forma. 
 
Outro recurso muito importante que a professora utilizava eram as imagens. Para que o estudante conseguisse conectar os sons, as sílabas, as palavras aos significados, ela mostrava figuras ou outros exemplos concretos que facilitassem a compreensão do estudante: “Eu tive esse cuidado de trabalhar a imagem associada à palavra, igual se faz com crianças de 4 e 5 anos. Porque só a palavra não fazia sentido nenhum para ele e desmotivava demais.”