“A escola tem que ser vida”

Professora e pesquisadora da USP, Silvia Colello discute concepções de alfabetização


     

Geral • Quarta-feira, 25 de Setembro de 2013, 08:57:00

“Eu entendo a alfabetização não como domínio do sistema, mas como a formação do sujeito usuário da língua escrita em toda a sua complexidade”. Silvia Colello não acredita em concepções monológicas da língua. Ela já foi professora da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, é docente da Faculdade de Educação da USP desde 1982 e hoje coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização e Letramento (GEAL). Nessa entrevista concedida durante o I CONBAlf (Congresso Brasileiro de Alfabetização), Silvia discute a evolução no modo de pensar a alfabetização e o que falta para que o brasileiro se torne um efetivo usuário da língua. Para ela, tão importante quanto aprender a ler e escrever, é gostar de ler e escrever.

 

Como você entende o processo de alfabetização?

Eu acredito que, historicamente, a concepção que está muito arraigada no Brasil situa a alfabetização como conhecimento das letras, a capacidade de articular sílabas, formar palavras e montar frases. É a alfabetização como se fosse o domínio do sistema. Quando você entende por essa via, tira da alfabetização aquilo de mais importante que ela tem: a inserção do sujeito na comunidade, no mundo letrado. Eu acredito na alfabetização como processo de emancipação do sujeito em face do contexto social. O sujeito sair de seu mundo e compreender o mundo.

Uma vez eu entrevistei crianças de seis anos em situação de risco e perguntei ‘por que os adultos querem tanto que as crianças aprendam a ler e escrever’. Elas me davam dados muito evasivos como “para ser alguém na vida”, “para ter um bom emprego”. Ou seja: a alfabetização nunca é vista como agora, para resolver os meus problemas. Para uma criança com seis anos de idade, falar que ela tem que aprender algo hoje, para daqui a muitos anos conseguir alguma coisa que nem sabe bem o que é, é muito complicado. Acho que essa é a porta de entrada para os problemas de aprendizagem: como uma criança de seis anos vai se disponibilizar a aprender uma coisa na qual ela não tem interesse?

No meio dessas várias crianças eu encontrei uma que me disse que o mundo estava cheio de coisas para as pessoas conhecerem e se divertirem. E que você só pode fazer isso se aprender a ler e escrever. Foi apenas uma no meio de tantas que me deu a dimensão do “preciso abrir essa porta para já”.

A conclusão é que a alfabetização não pode se fechar em si mesma. A alfabetização na escola não pode ser a alfabetização da escola. E o conhecimento da língua escrita não pode se fechar nas questões escolares, porque a escrita está no mundo: se ela é importante na escola, é porque ela é importante no mundo, não vice-versa. Eu não entendo a alfabetização como domínio do sistema, mas como a formação do sujeito produtor de texto, do sujeito intérprete, do sujeito usuário da língua escrita em toda a sua complexidade.

 

O que falta e o que é necessário para que o aluno se torne um efetivo usuário da língua escrita, atualmente, no Brasil? O que pode ser feito para motivar e criar esse hábito de escrita e leitura nas escolas?

O problema do aprendizado da língua escrita não é só da escola, a questão do analfabetismo no Brasil está vinculada com a distribuição dos bens culturais, com as desigualdades sociais, com o próprio princípio de democratização. Mas se não é um problema só da escola, é um problema também da escola.

Em primeiro lugar eu acho que falta valorização do ensino e do professor, acho que essas são peças chaves pra qualquer mudança que se faça na educação. Fico preocupada com o país onde os jovens não querem ser professores, em que a carreira docente não é uma carreira atraente. Quem vão ser os educadores de amanhã?

Eu considero o segundo passo como sendo a revisão dos paradigmas e concepções. Enquanto entendermos a língua escrita como um instrumento, não vamos trabalhar o que ela tem de mais belo que é o intercâmbio entre as pessoas, a possibilidade de viajar na leitura, estabelecer contato. A própria concepção de língua escrita ainda é muito reducionista. Outra concepção que me preocupa é a de aprendizagem, quando o aluno ainda é tratado como sujeito passivo e a aprendizagem é vista como uma coisa de fora pra dentro, que não considera o processo cognitivo desse sujeito que se interessa, procura saber e age sobre o objeto de conhecimento.

Em terceiro lugar, eu acho que temos que cuidar dos materiais usados, pois sabemos que muitas crianças têm como material de apoio apenas o próprio livro didático, a própria cartilha. A criança fica com a impressão de que a escrita é a escrita da cartilha. É preciso levar para escola a escrita na sua pluralidade. A criança precisa aprender a ler e escrever com história em quadrinhos, notícias de jornal, calendários, mapas, não só textos artificiais como ‘o boi bebe e baba’, ‘lili lê ali’. Convencer uma criança que vale a pena ler e escrever com esse material é lamentável.

Outro aspecto é cuidar das relações na escola. O professor tem que ser escutado e a escola precisa ser um lugar prazeroso, onde as crianças possam contar os seus causos, seus interesses. Precisa haver uma ruptura nesses muros tão fechados da escola, porque a escola tem que ser vida. Ela muitas vezes está tão artificial - seja pelo material, seja pela formação dos professores, seja pelo excesso de burocratização ou condições de trabalho – que funciona mal, tende a alfabetizar menos ou alfabetiza, mas não garante o gosto pela linguagem, não garante a inserção do sujeito no universo letrado. E aí se cria um ciclo vicioso.

 

As crianças entram em contato com as novas tecnologias cada vez mais cedo. Como essa configuração contemporânea se relaciona com o processo de alfabetização e letramento da criança? Essas novas tecnologias devem ser exploradas na alfabetização?

Eu acredito que o professor tem a obrigação de usar esses instrumentos, que são próprios do mundo do aluno, em benefício do letramento. Mas a alfabetização digital é um grande desafio, o professor tem que ser um mediador desse processo, inclusive ensinando o aluno a ser crítico com relação a todo o material que aparece na tela do computador, por exemplo. Agora, no Brasil, a gente tem uma situação que é bem complicada: quando falamos em tecnologia, internet e possibilidades tecnológicas, parece que os alunos sabem mais que os professores. Os professores ficam se enroscando porque neste universo da tecnologia da informação, nós, professores, somos os imigrantes, e nossos alunos são os nativos. Hoje uma criança de três anos está com o mouse na mão, essa é a linguagem deles.

Mas essa impressão de que eles sabem mais é falsa, eles podem navegar melhor, conhecer os instrumentos melhor, mas são os professores que têm a possibilidade de ensinar a ser crítico. Conhecer a tecnologia não é garantir a alfabetização digital ou o bom uso dos computadores. Eu penso que os professores não podem se acuar achando que sabem menos. Nós sabemos menos da manipulação dos botõezinhos, vamos dizer assim, mas somos nós que podemos mediar para que eles façam um bom uso.

Eu também percebo certo ufanismo das escolas e dos educadores dizendo “Aqui na nossa escola, todos os alunos tem um tablet, nós temos lousas digitais, etc”. Parece que a parafernália tecnológica entra na escola com uma perspectiva muito salvacionista. Eu tenho certa preocupação, porque você usa a tecnologia em substituição ao livro didático. Ou seja, qual o salto qualitativo disso?

Eu penso que o desafio dos professores é, em primeiro lugar, compreender que não se trata de saber mais ou menos, mas o que está em pauta, como sempre, é esse professor mediador de práticas críticas e conscientes. Em segundo lugar, usar a tecnologia não para fazer aquilo que a gente sempre fez, mas para buscar alternativas mais eficientes de ensino. Então o tablet não está aí para substituir o livro didático que substituía um outro livro e que estava substituindo o pergaminho. O tablet, ou tantas outras tecnologias, deveriam estar a serviço de novas formas de ensinar, de novas possibilidades de mediação entre o sujeito e os objetos de conhecimento.

 

Sendo a alfabetização mais do que o simples ensinar o código, indo além da escola, qual é o papel dos pais nesse processo? E da sociedade?

Temos que pensar em processos de letramento antes, durante e depois da escola. Antes, porque a gente sabe que todas as experiências que a criança tem com a língua escrita antes do ingresso escolar são decisivas para a aprendizagem. Quando você tem uma classe em que ninguém foi alfabetizado ainda, se tem uma falsa impressão de que todos estão no mesmo ponto de partida. Mas isso não é verdade, porque os filhos de pais universitários, de classe média, já tiveram uma ampla experiência com a língua escrita. Tem aquela mãe que leva o filho no supermercado, com a lista de compra e mostra pra criança que a língua escrita serve, por exemplo, para garantir a memória. Depois a criança está em casa e vê a avó seguindo uma receita culinária e percebe que o que está escrito faz o bolo sair sempre do mesmo jeito. Ela vê o pai lendo o jornal e vê que o jornal traz notícias do futebol, da política, do terremoto. Essa criança, que convive com experiências muito cotidianas de leitura e escrita, leva vantagem sobre as crianças que viveram em ambientes onde o jornal é, no máximo, um papel de embrulho.

As pessoas perguntam o que podem fazer pra incentivar o filho na escola e acham que é colocar ele sentado na mesa da cozinha fazendo cópia para deixar a letra bonita. Mas não, os pais não têm que assumir função de professor. Eles têm que assumir essa função de favorecer o ingresso e ampliar a experiência das crianças no mundo da escrita.

O letramento concomitante com a escolarização e que deve ser promovido pela própria escola é não só ensinar a ler e escrever, mas também viver a escrita. É frequentar biblioteca, levar livro para casa, trocar entre colegas, participar de eventos culturais como teatro, roda de histórias. Se a criança vive esse ambiente efusivo da língua escrita no momento que aprende a ler e escrever, as ações e intervenções na escola irão fazer muito mais sentido.

O letramento após a escola também é muito importante, porque a gente vê casos de pessoas que passaram pela escola, aprenderam a ler e escrever, mas depois vão entrar em um mundo onde a escrita tem muito pouco valor. Então o sujeito vai se concentrar na balada, na televisão, e são poucas as pessoas que vão ler um livro no seu momento de lazer. O livro ainda é um objeto elitizado, caro, então se você não tiver políticas públicas que favoreçam essa experiência, esse indivíduo mesmo tendo aprendido a ler e escrever, corre o risco de retroceder na sua habilidade de uso.

Eu acho que as experiências antes, durante e depois são essenciais para o sucesso da alfabetização, e elas dizem respeito não só a uma pratica pedagógica, mas também de políticas públicas de incentivo a leitura e democratização dos bens culturais de uma forma geral.