Entrevista com Regina Zilberman

Confira a entrevista que a professora da UFRGS conceceu ao Letra A, sobre a história da literatura infantil no Brasil


     

Letra A • Quarta-feira, 30 de Março de 2016, 13:19:00

Por Natália Vieira

Quando e em que contexto a literatura infantojuvenil chega ao Brasil? Quais agentes contribuem para isso?

Pode-se considerar dois ou três pontos de partida. Usualmente, se toma a publicação dos Contos da Carochinha, do Figueiredo Pimentel, por volta de 1894. São livros fora do contexto escolar, dirigidos para o público infantil e produzidos no Brasil. Muitos consideram esta a data de fundação. A livraria Quaresma começa a publicar esses livros do Figueiredo Pimentel para crianças, Contos da Carochinha, História da Baratinha, e assim por diante. Esse é um marco. Outro marco são os livros chamados Leituras Infantis; mas eram livros didáticos, que já aparecem por volta de 1820. Aí, sim, tem histórias para crianças, informações, geografia, história do mundo, coisas assim, para os pais lerem para as crianças em casa, ou para serem usados na escola. Se escolhermos outro marco, a data regride uns 80 anos. Antes da Independência [do Brasil], antes de 1820, havia circulação de livros desse tipo das leituras infantis, mas produzidos em Portugal, porque não havia uma imprensa brasileira. Era proibido imprimir livro no Brasil antes de 1808, e vai haver esse mercado a partir de 1820. A partir de 1870, 1880, tem poesias para crianças, manifestações esporádicas, mas focadas na escola e no leitor criança.

 

Como a literatura infantojuvenil no Brasil passa a ter produções realizadas no país?

Tu tens aí também dois processos que se dão quase simultaneamente, mas o marco é realmente 1890, já com a República instalada. Primeiro, essa produção voltada para o público infantil, não necessariamente vinculada à escola. Não necessariamente, o que não quer dizer que não vá para a escola. Aí tu tens primeiramente o projeto da [Editora] Quaresma, de Pedro Quaresma: eram livros bem populares, uma produção um pouco sofisticada, mas que foi um sucesso impressionante. Na sequência, tu vais ter outra liderança editorial pela Editora Melhoramentos, a bibliotequinha infantil do Arnaldo de Oliveira Barreto. Aí vão aparecer uns livros em formato pequeno, hoje seriam livros de bolso, justamente pensando nas crianças. As mãos delas sendo pequenas, elas poderiam manipular os livros porque são fininhos, flexíveis e em um tamanho menor. Depois, mais adiante, o Monteiro Lobato. Tu tens esse primeiro percurso, que é um percurso que margeia a escola. Não é desvinculado da escola, mas não depende só dela. É o Quaresma, depois a Melhoramentos com trabalho editorial e uma certa direção do Arnaldo de Oliveira Barreto, e depois o Lobato. Tu tens uma outra vertente que é também focada no público infantojuvenil, que é um livro de leitura para escola. Nesse caso, a liderança está com a livraria, a editora - na época, todas chamavam de livraria - Francisco Alves. A Francisco Alves recruta todos os grandes nomes da época ligados ao ensino de língua portuguesa. João Ribeiro, João Kopke e outros... É um grupo grande de autores que escrevem livros para circular na escola, mas também produzem histórias.

 

Como se dá a relação entre literatura para crianças e jovens e a educação no Brasil? O que mudou?

Mudou em termos qualitativos, mas não quantitativos. Tu podes dizer que houve um crescimento na preocupação de atender a interesses da criança, não ser um livro doutrinário, predominar o lúdico, a produção gráfica ser mais cuidadosa etc.; isso tudo no caso da literatura infantil foi crescendo em termos de qualidade e quantidade. Quer dizer, é um livro, para usar uma expressão que os economistas gostam, [que é] competitivo em plano internacional, tanto que o Brasil ganha prêmios. Porém, a literatura infantil nunca se livrou [da relação com a escola] e nem quer, não é que ela luta para isso. Ela precisa dessa vinculação com a escola por várias razões: a criança precisa ser alfabetizada e letrada, o professor precisa conhecer a produção para crianças, e hoje a escola é realmente o espaço mais poderoso em termos de formação de leitores. Ali que se forma o leitor, porque ou as crianças leem na escola ou não leem em lugar nenhum. É muito difícil ter uma política pública de formação de leitores e valorização da literatura infantil fora da escola.

 

Existem fases na literatura infantil no Brasil?

A literatura infantil pode ser recortada por períodos. Tu tens nos anos 1920, 1930, principalmente o período do Lobato, mas não só do Lobato, uma preocupação de valorizar o folclore nacional, a cultura brasileira. Está muito próximo dos ideais do modernismo, porque os escritores não precisavam ser modernistas - alguns eram, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, mas não precisariam. De todo modo, tu tens esse bolsão nacionalista muito presente, pouca tradução inclusive. Depois, dos anos 1950 aos anos 1970, 1980, já há um predomínio de traduções, de publicação de livro estrangeiro, e um esvaziamento dessa temática nacional. Nas décadas seguintes, 1970, 1980, a literatura infantil assume uma temática urbana, e muito foco na valorização de elementos políticos até, ela é sempre emancipadora. Seja da criança, seja da sociedade, ela sempre tem essa preocupação. Eu diria que atualmente a literatura infantil não perdeu essa característica, mas ela tem investido mais no que nós poderíamos chamar da metalinguagem. Quer dizer, uma incorporação de produtos oriundos de outras linguagens – seja linguagens gráficas, seja produção literária anterior, seja paródia – ela tem procurado rever a sua própria história de uma forma crítica. Esse é um desenho um pouco rápido, sintetizando muita coisa, pode até ser um pouco superficial, mas eu acho que essas são as grandes linhas que marcam a literatura infantil produzida no Brasil. 

 

Na ditadura, esse mercado sofreu influências da política, da educação?

Foi curioso o processo, porque foi um período de censura muito forte. Censura tanto da literatura, da imprensa, quanto autocensura, as pessoas tinham medo. Mas parece que ninguém deu muita atenção para a literatura infantil, porque não era muito saliente. Tinha dado aquele período todo de vácuo, digamos, dos anos 1950, 1960, então funcionou muito como essa válvula de escape. Tu começas por ali a minar o sistema, trazer essas questões políticas. Acho que foi muito importante aí a Ruth Rocha. Questões ecológicas, como vai aparecer no Wander Piroli. Por exemplo, a de 1977, aquela Coleção do Pinto que causou um rebuliço danado na época, porque trazia tópicos que estavam na literatura que vinham sendo censurados e que não se podia falar, como deterioração do meio ambiente, desaparecimento de pessoas, estava tudo ali. Então, abriu realmente um canal, e depois, como veio a redemocratização, esse canal continuou indo para frente.

 

Que mudanças significativas aconteceram na literatura infantojuvenil brasileira nos últimos 30 anos?

Primeiro, houve um crescimento e uma consolidação do mercado, [com] premiações internacionais. [Também houve] uma influência das compras do governo. Não é uma influência ideológica - é importante chamar a atenção - isso vem desde meados dos anos 1990 e prosseguiu até 2014, acho que vai ser retomado. Esse mercado se fortalece e recebe esse suporte do Estado, em primeiro lugar. Em segundo lugar, os autores vão responder a isso procurando fazer uma literatura criativa. Quer dizer, como não existe uma influência ideológica, os autores vão poder dar vazão à sua imaginação, à sua fantasia com muita apropriação de coisas já feitas, dentro do espírito da pós-modernidade, a paródia, a intertextualidade. Tem coisas muito interessantes nos grandes autores. Muitos dos grandes autores de 1990 já eram grandes autores em 1980, como Ana Maria Machado. Pedro Bandeira é outro, dentro desses autores conhecidos, e vai aparecendo também uma série de autores novos muito focados no público jovem, [como] Rodrigo Lacerda, Caio Vitter. Esse filão da juventude vai ser a grande novidade dos últimos 10, 15 anos. A consolidação não só do público infantil, mas também do público juvenil, esse jovem adulto. É como se aquelas crianças que, nos anos 1980, 1990, foram estimuladas à literatura infantil, hoje são mais velhas, cresceram, são jovens, então esse público estará sendo estimulado através das obras desses autores.

 

Considerando as novas formas de ler, que projeções você faz para o futuro da literatura infantil e juvenil  no Brasil?

Em primeiro lugar, o campo da produção continua crescendo, tendo uma oferta muito grande. Saem os livros de criação, as adaptações, os recontos, as traduções, a poesia, o que significa um crédito do mercado, da indústria, nesse crescimento. O segundo aspecto é que a literatura infantil tem resolvido bem, até melhor do que outras formas de linguagem verbal, a relação com os novos suportes. De um lado, ela pode circular em associação com outras mídias de comunicação de massa, vinculação com cinema, game, e de outra parte ela se ajusta com muita facilidade à produção digital, melhor do que qualquer outro gênero literário. Isso abre uma fronteira nova muito importante e muito promissora. Eu não vejo outra formulação literária no Brasil sentir-se tão à vontade no meio digital. Tanto que a Câmara Brasileira do Livro, que dá uma premiação anual pela produção literária, e essa premiação é dividida em gêneros, criou uma categoria para o livro infantil digital; não criou para as outras categorias. Isso também é bastante importante como projeção de futuro. Um futuro, digamos assim, que pode não ser maravilhoso, mas é promissor.