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Iletrismo

Autor: Anne-Marie Chartier, Isabel Cristina Alves da Silva Frade,

Instituição: Laboratoire de Recherche Historique Rhône-Alpes / École Normale Supérieure de Lyon. França, Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG / Faculdade de Educação / Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita-CEALE,

(Tradução de Ceres Leite Prado)

 

Na década de 1980, o termo iletrismo passou a substituir a expressão “analfabetismo funcional”, que designava a incapacidade de compreender um texto simples relacionado à vida cotidiana. A dupla literacy / illiteracy, em inglês, foi traduzida como littératie/ illettrisme, em francês, e como letramento/iletrismo, em português. Passou-se a chamar de iletrado não o adulto privado de “ler-escrever-contar” por falta de escola, mas aquele que não adquiriu, em determinada época prevista para tal aprendizado, os saberes de base, variáveis no tempo: leitura oralizada – ditado – cálculo, em 1880; leitura silenciosa – expressão escrita – matemática, em 1970; orações – cânticos – catecismo, em 1700. Essas variações indicam que tais necessidades básicas são historicamente produzidas.

 No Brasil, no caso de alguns indicadores de alfabetização, as exigências também são variáveis e crescentes. Comparando-se as habilidades demandadas nas perguntas feitas desde o primeiro censo, em 1872, até os censos atuais, constata-se progressão de exigências sociais e, consequentemente, de requisitos escolares. Nos primeiros, as perguntas referem-se à habilidade de assinar o nome; depois, a de escrever um bilhete simples (1950); mais recentemente, agrega-se a habilidade de ler e escrever ao tempo de escolarização, o que supõe, indiretamente, que o indivíduo fará uso funcional da escrita.

O INAF (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional), empregado no Brasil, é constituído de vários níveis, mostrando que se espera muito mais de jovens e adultos, em termos de utilização social da escrita: habilidades de leitura, escrita, cálculo numérico e resolução de problemas, práticas de letramento e numeramento.

Na França, quando os empregos que não exigem qualificação começam a excluir aqueles que não conseguem ler (por exemplo, instruções, referências) ou escrever (por exemplo, preencher fichas), as definições e estatísticas se modificam. Ainda no caso da França, passa-se de 1 milhão de iletrados,  em 1980, a  5 milhões, em 1998, e a 3,1 milhões em 2009. Pesquisas como as de Harvey Graff, que desmistificam as relações sempre positivas entre saber ler e escrever e outros desenvolvimentos, como o tecnológico, o social e o educacional, permitem compreender melhor o fenômeno. Esse autor considera que o domínio da escrita não é uma variável, que, sozinha, altera as condições econômicas e sociais.  

No exemplo francês, pesquisas desfizeram associações simplistas: a) entre iletrismo e desemprego: 67% dos iletrados em idade ativa estão empregados, o que mostra que é possível desenvolver atividades de trabalho sem dominar plenamente a escrita; b) entre iletrismo e zonas urbanas sensíveis: 10% estão nessas zonas urbanas- ZUS e 50%, na zona rural; c) entre iletrismo e pobreza/precariedade: 7 milhões de pobres, em 2009. Neste último caso, contrapondo-se o índice de iletrismo de 3,1 milhões com a estatística de pobreza, no mesmo ano, constata-se que, mesmo continuando pobre, quase metade dessa população possui habilidades de leitura e escrita – e isso não altera automaticamente o nível de pobreza; d) entre  iletrismo e diminuição de nível da educação: menos de 5% de iletrados aos 17 anos, 14% com mais de 55 anos. Assim, a escolaridade longa diminui o iletrismo, mas transforma as dificuldades precoces em fracasso (15% das crianças de 10-11 anos são computadas como crianças que fracassam na escola).

Em outros termos: as exigências escolares de ampliação de habilidades relacionadas ao uso da leitura e escrita criam novos problemas de ensino e aquisição de tais requisitos; assim, fracassos antes evidenciados no início da escolarização são postergados para fases mais avançadas da escolarização. No Brasil, evidências dos mesmos problemas são associadas à persistência expressiva do analfabetismo funcional e aos desafios de (re)alfabetização em anos finais do Ensino Fundamental.


Verbetes associados: Alfabetização, Analfabetismo, Cultura escrita, Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional, Letramento, Numeramento


Referências bibliográficas:
Agence Nationale de Lutte contre l'Illettrisme. Les chiffres de l’illettrisme. Disponível em: http://www.anlci.gouv.fr. Acesso em 25 de maio de 2014.
FERRARO, A. Analfabetismo e níveis de letramento no Brasil. Educação e Sociedade. v. 23, n. 81, p. 21-48
GRAFF, H. J. O mito do alfabetismo. In: Teoria & Educação. Porto Alegre, n. 2, 1990.
LAHIRE, B. L’invention de l’illettrisme. Paris, La Découverte, 1999.
RIBEIRO, V.; VÓVIO, C.; MOURA, M. Letramento no Brasil: alguns resultados do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional. Educação e Sociedade. v. 23, n., 81, p. 21-48.
SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 25, jan./abr. 2004.

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