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Usos sociais da língua escrita

Autor: Antônio Augusto Gomes Batista,

Instituição: Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – CENPEC,

A expressão usos da língua escrita ou, simplesmente, usos sociais da língua, envolvendo o emprego das modalidades oral e escrita, parece ter se originado, no Brasil, em torno das didáticas ou das práticas pedagógicas baseadas na difusão da Psicogênese da Alfabetização, bem como da linguística de base interacionista, a partir dos anos 1980. Apesar disso, didáticas em parte semelhantes do ensino da língua oral e escrita se observam desde os anos 1970 nos países de língua inglesa, com a whole language (ou “linguagem integral”), e de língua francesa, com a proposta de leiturização. O ponto em comum entre essas distintas abordagens é o de que se deve partir de situações comunicativas reais – isto é – dos usos sociais da língua – para o domínio da língua. Se, no caso do whole language e da leiturização, esse domínio se dá por imersão, no caso das práticas pedagógicas brasileiras, os usos são apenas o ponto de partida de um processo, que prossegue com práticas de análise linguística – ou do sistema de escrita, quando se trata da alfabetização – e de retorno ao uso, por meio da releitura do texto ou, sobretudo, de sua revisão e reelaboração, em se tratando da produção.

No contexto da Psicogênese da Alfabetização, a análise é feita para possibilitar a formulação e a reformulação de hipóteses sobre o que é a escrita e como se organiza. A necessidade de partir do uso e voltar a ele encontra amparo tanto na própria teoria da aprendizagem que sustenta a Psicogênese, quanto nas características sociais e culturais das crianças que ingressam na escola pública brasileira, em geral pertencentes a meios pouco letrados e com tipos de letramento muito afastados dos mais valorizados socialmente. Para a criação de situações sociais de uso, as práticas pedagógicas vão se basear, especialmente na alfabetização, nas funções da escrita,– apoiar a memória, na forma de listas; registrar textos pré-existentes de uma cultura oral, como parlendas, cantigas, poemas; diferenciar e identificar objetos, pessoas e fenômenos, por meio do nome próprio, crachás, etiquetas, calendários; comunicar-se com alguém que está distante, por meio de bilhetes e cartas). Nos anos posteriores à alfabetização, sobretudo, a organização das situações didáticas de uso social será feita por meio da recriação de diferentes contextos de interação, em distintas esferas da atividade humana: escrever com diferentes objetivos, para variados interlocutores e públicos leitores, em suportes ou portadores de textos distintos.

Essas situações de usos sociais tenderam, seja na produção acadêmica, seja em documentos curriculares, a ser denominadas práticas de leitura e de escrita, a partir do trabalho pioneiro do linguista e educador João Wanderley Geraldi. As práticas se articulam em um esquema didático que tem como eixo central a produção de um texto, para o qual se mobilizam práticas de leitura (para o conhecimento do tema, para a exploração da estrutura do gênero, por exemplo),  seguidas de práticas de análise linguística da primeira versão do texto produzido, de modo a orientar práticas coletivas e individuais de revisão do texto, que posteriormente, como acontece com textos ‘reais’, será socializado, num circuito de comunicação  - se se trata de um jornal, será distribuído ao seu público leitor; se cartaz, será afixado  no local adequado; se carta, será enviada a seu destinatário, entre muitas outras possibilidades.  Se no início, as propostas para análises linguísticas se voltavam predominantemente para uma abordagem de aspectos formais, passam, com um tempo, a privilegiar uma análise da relação entre leitor, texto, objetivo do autor, quer dizer, dão origem a uma abordagem mais discursiva, que visa ‘expandir’ o texto.

Tanto na alfabetização quanto nos anos posteriores, as críticas a essas práticas pedagógicas se baseiam em dois pontos. Primeiramente, e especialmente na alfabetização, elas apontam a suposta dificuldade de fazer o aprendiz deslocar sua atenção da situação de comunicação (em que aspectos formais e abstratos não estão evidência), para a análise de regularidades - de modo a fazer generalizações sobre o sistema de escrita. Esse movimento, porém, exige uma abstração da situação de comunicação. Em segundo lugar, as críticas apontam a suposta dificuldade de organizar de modo sistemático o ensino, já que as práticas de análise – o momento em que de fato ocorre uma forte intervenção do professor – decorreriam, em grande parte, dos variados e complexos problemas de aprendizado manifestados pelos aprendizes ao escrever ou ler textos. Isto dificultaria o planejamento sistemático, a organização de progressões e a definição dos tempos de aprendizado esperados.

Em resposta a essas críticas, há uma forte defesa, mais recente, após o surgimento no Brasil, do conceito de letramento, da importância de trabalhar tanto os usos quanto o sistema de escrita, mas como dois processos distintos, que demandam diferentes abordagens. Além disso, defende-se, para os anos posteriores, uma ampla difusão do trabalho com sequências didáticas baseado na exploração de gêneros e tipos de discurso (narrar, relatar, expor, argumentar, descrever ações).


Verbetes associados: Alfabetização, Cultura escrita, Esferas ou campos de atividade humana, Gêneros e tipos textuais, Letramento, Letramento escolar, Psicogênese da aquisição da escrita , Práticas de leitura , Reescrita, Sequência didática, Situação comunicativa


Referências bibliográficas:
FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
SOARES, Magda Becker. Alfabetização: a (des) aprendizagem das funções da escrita. Educ. Rev., Belo Horizonte, n. 08, dez. 1988 .
GERALDI, J. W. (org.) O texto na sala de aula. Cascavel: Assoeste, 1984.

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